A Invenção do Microcosmo Termal em Portugal = de Helena Gonçalves Pinto
Roca Lisboa Gallery, “A medicina, o hospital e a água”, 5 julho 2019. Conferência de Helena Gonçalves Pinto, investigadora do Centro Nacional de Cultura e docente na Universidade Autónoma de Lisboa.
Microcosmo termal 1 / Microcosmo termal 2
O aproveitamento da água para efeitos medicinais e a sua exploração económica, através dos tempos, têm sido factores importantes de desenvolvimento do microscosmo termal, de afirmação e perpetuidade da cultura termal. Emergente das entranhas da terra, a água é o primeiro alimento do imaginário, da origem dum espaço desenhado e matéria vital para a ocupação humana, pelo que a sua afirmação, bem como a de outros recursos naturais, e a tomada de prevenções que afectam a ordem do assentamento têm sido aspectos importantes para a sustentabilidade de um território de vida (de cruzamento entre autóctones e turistas) e a actividade nuclear do turismo.
O estudo da actividade balnear permite-nos compreender o fenómeno turístico, numa actividade plena de encontros e rupturas entre população autóctone e a sociedade sazonal, criando e fixando os ritos, com evidentes repercussões na funcionalidade do oficio. O gosto pela antiguidade, expressa na recriação de elementos neo-clássicos seleccionados, conformam os espaços determinados para a sua especialidade.
Investimento, quer por parte dos concessionários, proprietários e câmaras municipais – que investiam em novos e modernos edifícios, novas infra-estruturas viárias, maior animação –, quer por parte dos utentes que adquiriam os bens e investiam na aquisição ou arrendamento de imóveis, no desenvolvimento de novas actividades hoteleiras, comerciais e desportivas e na promoção turística.
O carácter inovador das termas portugueses transformou-as num produto turístico de excelência baseado nas características individuais de cada microcosmo: protecção do recurso natural – a água; manutenção dos elementos identitários de cada estância, na preservação da paisagem, e na organização que arquitectura estrutura e configura os espaços, ambientes e a sociedade, não existindo apenas um único tipo de espaço arquitectónico balnear. Consolidam-se como espaços pluridiciplinares, pela abrangência de actividades que contêm e pelo aproveitamento dos recursos endógenos das diferentes regiões.
Em finais do século XIX, quando foi decretada a primeira legislação do sector (1892), os empresários apostam na construção de novas termas, agora certificadas como território especializado de saúde e lazer. Nestas novas estâncias entretanto construídas surgem diferentes edifícios balneares, pavilhões de nascente e buvettespara ingestão de águas, galerias de passeio, lojas, hotéis e residências particulares, sector de engarrafamento de águas, edifícios para recreação (salas de leitura e jogos, casinos, animatógrafos, cinematógrafos), maioritariamente inseridos, dentro dos parques ou dispersos num povoado que, na sua maioria, se consolida em terra-de-águas, estruturando um conjunto de actividades económicas e sociais (Abrunhosa, Caldas da Amieira, Termas da Cúria, Caldas da Rainha, Caldas da Cavaca, Caldas de Canaveses, Caldas de Moledo, Estoril, Quinta do Ourives, Termas de Entre-os-Rios, Termas S. Vicente, Caldas de Monção, Vizela, Taipas, Melgaço, Vidago, Pedras Salgadas, Carvalheiros, Termas de Moura, Monte Real, Termas da Piedade, Termas do Cucos, Termas do Vimeiro).
Para estas se ia “a banhos” ou “ir a águas”, termos que foram baptizadas por Ramalho Ortigão e era um fenómeno entendido como uma mudança quotidiana, de espaço físico e ambiente, encontrando-se nas estâncias termais um espaço propício a alterações nas actividades rotineiras, alimentares e ambientais, contribuindo para predispor o indivíduo a tratar da saúde, mas também a realizar actividades lúdicas, dando origem ao que actualmente chamamos de turismo de saúde. Os enfermos procuravam serviços médicos e para a sociedade endinheirada, de aristocratas e burgueses, “sujeitos que não têm que fazer e vão para as Caldas em partida de recreio” (Ramalho Ortigão), as termas constituíam um itinerário turístico de eleição, ponto de encontro sazonal, onde nasceram ritos próprios das motivações dos utentes, tanto por necessidade de “cura”, como pela diversão e lazer.
A actividade deste território estava enquadrada com os primeiros alvarás de exploração e perímetros de protecção das nascentes, o que envolveu a realização periódica de estudos químicos de investigação das águas “mineromedicinais”, assim como dos seus efeitos terapêuticos. Foi obrigatória a apresentação de projectos de arquitectura e de especialidade dos edifícios.
Durante o século XX, a maioria dos microscosmos recebem novas infra-estruturas e outros equipamentos essenciais para o quotidiano: iluminação eléctrica, correio, telégrafo, telefone, as lojas comerciais. A institucionalização do turismo é parte deste desenvolvimento.
Esta transformação originou um território inovador e complexo, nas suas valências geológicas, físicas, químicas, médicas, urbanísticas e arquitectónicas, que, a partir do final da Segunda Grande Guerra, revelou com novo dinamismo, aliado à modernização terapêutica, à realização sistemática de estudos e relatórios médicos, mas também na formação do pessoal e na promoção de serviços de informação e criação programas de cultura e lazer.
O microcosmo termal tende a ser (quase) autosuficiente e com uma dinâmica inovadora, disponibilizando ao utente tudo aquilo que necessita num tempo fora do tempo quotidiano: serviços de transporte, alojamento, restaurantes, clubes e cafés. Esta organização planificada incorpora, para além dos edifícios, novos conhecimentos, valores de sociabilização e aculturação e sensações diversas, necessários para a terapia total.
Até à década de 1980, a sazonalidade da actividade termal e turística criou reflexos evidentes na economia local: novos empregos, rendimentos, impostos adicionais, permutas com o exterior, intensificação de novas oportunidades de negócio familiar ou de sociedades – pensões, hotéis, lojas comerciais; criação duma oferta cultural e lúdica.
Ainda hoje a intervenção nas estâncias termais, em Portugal, é supervisionada por entidades públicas, designadamente o Ministério de Economia, o Ministério da Saúde, o Ministério do Ambiente e o Ministério da Cultura, para além das autarquias, que repartem competências na avaliação de projectos sobre prospecção de águas, reabilitação de infra-estruturas (redes de águas e esgotos, equipamentos, etc.), novas construções, higiene e segurança, preservação de património classificado ou em vias de o ser e investimentos turísticos.
Mas, inúmeros desafios se colocam ao desenvolvimento futuro da criação de oferta turística associada às termas: compatibilização entre o turismo, a preservação de património, o ordenamento e o ambiente. Estes são, aliás, aspectos que parecem colocar-se com maior acuidade aos poderes públicos, aos empresários e autarquias locais, onde se situam as estâncias termais portuguesas.
O microcosmo surge como um todo, um território completo e criado artificialmente para constituir um cenário idílico, que é habitado durante o período em que decorre a terapia por via da utilização das águas. Constitui um sistema, onde se estabelecem inter-relações de carácter funcional, estético, cultural e patrimonial, cuja forma é caracterizada pelas relações entre espaços e edifícios induzidos pelas actividades que se desenvolvem, quase sempre, ora dentro de parques, ou em grandes áreas arbóreas, ou formando pequenos aglomerados populacionais. O contacto com o mundo exterior diverge de local para local, mas uma maioria mantinha uma ampla interacção de oferta e de procura com os múltiplos agentes urbanos.
Os balneários, hotéis, parques, alamedas, quiosques, galerias de passeio, buvettestêm sido cenários de uma forma de entender e viver a vida durante um período concentrado de tempo. Nestes lugares, os aquistas e seus acompanhantes viveram a esperança de uma “cura” através da água e hoje, de prevenção e preservação da saúde e do bem-estar.
Concluindo, o papel inovador do microcosmo termal só se manterá se se adoptarem estratégias inovadoras e exemplares de mudança e progresso designadamente na articulação entre o ordenamento do território e o turismo, como sinónimo de bem-estar social, cultural e material. Nem todos estes microcosmos perduraram (sendo as causas diversas e complexas). Mas no presente, mantém-se a necessidade da apostas na cultura de valorização, na inovação e na integração destes territórios nas redes de pequenas e médias cidades com vocações semelhantes, tendo em vista a cooperação estratégica e o intercâmbio no conhecimento, preservando o microcosmo termal como um espaço turístico e um valor estruturante na economia e na cultura do País.